domingo, 15 de abril de 2012

O que é Arte Primitiva

Podemos encarar a arte primitiva como a "arte primeira" ou seja, aquela que representa as primeiras formas de manifestação artística da humanidade. Incluímos nesta classificação, tanto as primeiras obras de arte feitas pelo homem quanto as obras realizadas pelas comunidades que adotam o estilo de vida anteriores à civilização.

Quando começamos a tentar discutir qual arte é fruto de uma civilização ou de um povo primitivo, começamos a perceber que esta classificação pode esbarrar em uma série de preconceitos. As esculturas em bronze da Nigéria ou em pedra da América Central, com as quais os europeus se defrontaram no século XVI, não ficam atrás de suas similares contemporâneas.

Apesar de arqueólogos e historiadores não terem dúvidas em chamar de civilização os impérios africanos e americanos, autores dessas obras de arte, muitos críticos de arte ainda teimam em classificar essas obras como arte primitiva. A justificativa dessa classificação está na definição de arte primitiva como a arte dos povos não letrados.

Seguindo este parâmetro, chama-se de arte primitiva, tanto uma sofisticada escultura asteca em cristal quanto um cordão de dentes de capivara dos mais simples. Muitos historiadores da arte, quando usam este critério com seriedade, incluem nesta categoria os povos europeus que não conheciam a escrita, como os celtas ou os germanos.

A História da Arte, mesmo citando a importância de povos da África e Ásia, aborda principalmente a trajetória européia. Focaliza sua evolução a partir da arte grega e do amadurecimento dos ideais estéticos, da libertação da rigidez das oficinas ao final da idade média, suas crises com a revolução industrial até hoje com a sua ampla divulgação pelos meios de comunicação.

Os historiadores da arte definem como artistas verdadeiros, os indivíduos que tentam tornar sua obra única, inovadora, ou desconcertante; que olham criticamente a arte de seu tempo e, ao perceberem as deficiências, assumem conscientemente a proposta de superá-las. Curiosamente, só reconhecem a participação de artistas europeus ou que seguiram suas trilhas. Para estes historiadores, a arte primitiva não participa dessa evolução, se situando anterior ou paralela a ela. Alegam que o artista primitivo não teria propostas pessoais a expressar em sua arte, somente se preocupando em representar os valores de sua comunidade.

Essa tendência acaba menosprezando outras regiões com trajetórias complexas, como China, Índia, América Central e África Ocidental (só para citar algumas). Acabamos considerando vários tipos diferentes de arte: arte chinesa, arte árabe, arte egípcia, arte primitiva... Dessa forma, convencionou-se a chamar a arte européia como "A Arte", sendo tratada como objeto de folclore, qualquer manifestação artística que siga outros padrões.


Outra limitação está em pressupor que o "artista primitivo" estivesse preocupado apenas em representar os valores pré-estabelecidos de sua comunidade. Ao lado dessa preocupação, existe a necessidade, ainda que inconsciente, de exprimir suas próprias experiências. Na arte primitiva realmente existe uma relação íntima entre a arte e o cotidiano, mas não é apenas o dia a dia da comunidade que influencia na sua arte. Também a sociedade acaba sendo fortemente influenciada por suas manifestações artísticas.



Quem é o artista primitivo

Observando as motivações do artista, deixando um pouco de lado questões como raça, local ou época em que a obra foi realizada podemos encarar uma outra discussão: arte primitiva é arte? Essa dúvida se baseia na idéia de que o artista é um indivíduo que tem como principal objetivo se expressar através de sua obra e vencer os padrões artísticos de sua época através de algum tipo de inovação pessoal (as "questões" que falamos anteriormente).

O artista primitivo não demonstra ter nenhum destes dois objetivos principais. Sua obra segue os padrões estabelecidos por seu povo, não assumindo uma "questão" a ser resolvida, ainda que volta e meia alguma questão acabe por ser resolvida. Seu objetivo principal não é externar seu drama pessoal mas os valores de sua comunidade.

Por outro lado, como os utensílios, eram geralmente fabricados pelas próprias pessoas que os usariam, os objetos do dia-a-dia possuem um toque pessoal, principalmente os de uso pessoal. Prestando atenção nesses objetos, percebemos não apenas o padrão pré-estabelecido pela comunidade, como também a força criativa capaz de produzir peças de valor único.

Ainda que determinados indivíduos acabem se destacando como mais hábeis ou criativos em uma técnica ou outra, raramente encontramos a figura do especialista. A especialização do trabalho artístico é dividido com maior ou menor rigor, em "trabalho de homem" (entalhe em pedra, osso, madeira...) e "trabalho de mulher" (cerâmica, tecelagem, cestaria...). Dessa forma, todos os indivíduos acabam sendo artistas, mais ou menos talentosos, sendo reconhecidas as habilidades, não dos indivíduos, mas da comunidade. A fama pela qualidade do trabalho acaba sendo partilhada por toda a comunidade e não creditada a um indivíduo.

Uma das exceções mais freqüentes se dá nos caso da magia, onde desenhos ou esculturas devam possuir propriedades mágicas particulares. Nestes casos o trabalho deve ser realizado pelo pagé ("chamã", como preferem alguns) uma vez que a magia estará no ato de criar o objeto de arte e não no objeto em si.

Ainda que um ícone seja feito pelo melhor escultor da comunidade, suas propriedades só se manifestam através de ritual realizado pelo sacerdote após o término da obra. Esse tipo de mentalidade é mais facilmente entendido no caso de desenhos no chão ou paredes de rocha. Ainda que esses desenhos, uma vez prontos sejam objeto de ligação com o sagrado, a magia se manifesta no momento em que estes são realizados, no riscar de traços na superfície.



Artesanato é arte?


Estamos acostumados a considerar como objeto de arte aquelas obras feitas por artistas dotados de algum tipo de talento único no mundo. O artista seria como o porta voz da sociedade, manifestando em sua obra drama vivido pela cultura em que está inserido. Quem adquire uma obra de arte, está adquirindo um pedaço de pensamento. Na nossa sociedade nos permitimos dispor de tempo considerável de nossa vida para apenas admirar obras de arte, nos deixando inspirar por elas.

Do outro lado temos o artesanato, que consideramos, a grosso modo, como aqueles objetos utilitários que encontramos em feirinhas ou brechós, ou ainda, que costumamos comprar para dar de lembrança quando voltamos de viajem. Acreditamos muitas vezes que seria ainda o produto do artesão, indivíduo que erroneamente é tido como simplório, dotado de poucos recursos e criatividade.

A obra de arte seria uma manifestação única de um momento singular da vida do artista, o artesanato seria um produto feito em série, seguindo um modelo pré determinado, apresentando poucas variações. Por outro lado, os artesãos costumam seguir uma "escola", ou seja, estão ligados em estilo e técnica a um "mestre" o qual seguem com muito poucas variações. Como acontece com a arte primitiva, o artista como indivíduo acaba sendo menos famoso que a comunidade (neste caso, a escola) a qual pertence.

Quando um mestre se torna conhecido e aceito pelos críticos de arte, deixa de ser chamado de "artesão" para ganhar o estatus de "artista popular". Ainda que em princípio pareça que o trabalho desses mestres mais famosos ainda seja artesanato, pode-se muitas vezes perceber que sua obra resolveu alguma "questão" artística, não se limitando a seguir o padrão de outros mestres.

Esta condição, não se prender aos padrões da escola na qual foi formado, não poderia ser aplicada sobre muitas pessoas consideradas como artistas? Geralmente costuma-se ser mais complacente com alguns campos da arte, chamando-se de artistas todos os pintores, escultores, compositores e etc. Ainda assim, o tempo acaba sendo um juiz menos piedoso e muitos artistas pouco criativos que hoje são aclamados acabam sendo esquecidos em favor de verdadeiros artistas (entre eles, alguns artesãos) que em sua época foram ignorados.



O valor da arte primitiva




Alguns teóricos gostam de classificar as artes como "maiores" ou "menores", conforme se relacionem com as limitações da técnica, do mercado ou do caráter utilitário. Por este critério, a maior das artes seria a poesia, podendo ser realizada apenas com palavras e gestos, não necessitando de material e técnica, livre do mercado e etc (pode-se discutir isso). A menor delas seria a fotografia, se tratando de uma elaboração tecnológica com pouco espaço a inspiração pessoal e etc (pode-se discutir isso também).

Seguindo esta mentalidade, no fundo do poço encontramos o artesanato, considerado como feito apenas para o mercado, segundo regras pré-estabelecidas (quantos artistas consagrados não agem desta forma?). O artesanato, é acusado de visar utilidades práticas, fato inadmissível numa obra de arte verdadeira.

Em peças como jarros, cadeiras, porta-copos ou ímãs de geladeira, sabemos claramente para que foram feitas. Outros objetos tem sua utilidade menos explícita, podendo ser considerados um mero adorno, mas isso já basta para ser considerado como possuidor de alguma utilidade prática.

Usar esse critério para diferenciarmos o artesanato da arte acaba se mostrando problemático. Mesmo as obras de arte mais conhecidas e representativas, acabam apresentando algum tipo de utilidade. Muitas vezes essa utilidade é semelhante aquela atribuída ao artesanato ou a arte primitiva.


Tanto os objetos de arte clássica como os de arte renascentistas foram realizados para serem objeto de adoração ou para favorecerem politicamente quem encomendou. Ainda que também fossem manifestações bastante pessoais, foram financiados por pessoas que visavam uma utilidade prática.

A arte ainda hoje se mostra "útil". Os organizadores de exposições escolhem os artistas visando atrair grande público, ganhando para si prestígio e poder político. Obras são negociadas em leilões a altos preços, sendo investimento seguro e uma boa forma de burlar o imposto de renda (nada de citar nomes desta ou aquela fundação). Para nós, meros mortais, algumas obras podem ser úteis para demostrar "requinte e bom gosto" diante de determinado círculo social ou ainda esconder buracos e manchas nas paredes.

O artista primitivo, por sua vez, não vê sentido na divisão entre arte e artesanato. Todo objeto que realiza tem sua utilidade, mesmo que invisível aos nossos olhos. Poderíamos portanto dizer que tudo o que ele faz é artesanato. Por outro lado, esses objetos utilitários são o principal meio pelo qual as sociedades primitivas manifestam seus valores, seus temores e sua história.

Se olharmos com cuidado a forma como os "primitivos" encaram a sua arte, veremos o quanto a sua arte é livre. Seus utensílios poderiam muito bem não conter nenhum tipo de intervenção artística e se manteriam eficientes da mesma forma. Ainda assim, esses artistas-artesãos, passam muito mais tempo confeccionando seus utensílios do que realmente seria necessário caso não fossem adornados. Homens e mulheres chegam a passar mais tempo confeccionando determinados artefatos do que os utilizando. Talvez por estarem mais próximos da natureza, sintam mais necessidade de expressar sua humanidade.

Através de seus ritos, sua música, seus adornos, ou ainda, qualquer atividade que não esteja ligada a atender suas necessidades mais práticas, o ser humano se reconhece como pessoa. Através da arte que chamamos de primitiva, aqueles que chamamos de primitivos se identificam como povo, caçadores, homem ou mulher, adolescente ou criança, membro de uma comunidade... É através da arte que o homem primitivo trava contato com a sua própria identidade.

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