segunda-feira, 15 de novembro de 2010

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À propósito das máscaras


À propósito das máscaras

A arte primitiva africana não deixa ninguém indiferente, porque ela provoca no observador um largo espectro de emoções, além da serenidade, do maravilhamento, seguido de uma sensação indecifrável, de atração e de perplexidade. Está arte é a fonte da humanidade e permanece imutável através dos tempos apesar das vicissitudes por que tem passado o continente africano. Sua mensagem se inscreve na universalidade.

Cada máscara é um livro de magia aberto que fascina, que suscita a curiosidade, pois que nos convida a decifrar para descobrir de capítulo em capítulo a mensagem revelada. O escultor africano não tem o mesmo desejo que o escultor contemporâneo que sente necessidade de colocar sua assinatura na obra. Na África, a obra de arte não é propriedade de um escultor, mas é a expressão de uma etnia, de um povo e da divindade que utiliza a mão do artista para nela pousar sua essência espiritual num objeto profano.

Se o continente africano abriga uma grande variedade de cultura onde cada uma se caracteriza por sua linguagem, suas tradições e suas formas artísticas, a arte africana no seu conjunto, engloba e abraça por sua vez a história, a filosofia, a espiritualidade e os mitos. Ela traz consigo a alma de todo o continente. A arte africana não visa à representação, a imitação ou a figuração, mas a significação, o simbólico. Ela transgride a forma em proveito de seu conteúdo, de seu sentido ou o que ela exprime. A beleza desta arte vem de sua especificidade, uma estética do domínio do indizível, do domínio do re-sentimento, da sensação do choque que ela provoca.
A arte africana desperta primeiramente a função mais que a forma particularmente em certas etnias africanas. Com efeito, desperta a própria vida e suas manifestações, sobretudo por uma concepção mística e unificadora do mundo. Também, a beleza não é jamais almejada por ela mesma. Há uma preocupação fundamental de ligar o pensamento religioso e o objeto encarregado de exprimi-lo ou de servi-lo. Esses objetos são feitos por artistas que se colocam a serviço do culto dos ancestrais. Não se pode separar o valor plástico da obra de seu contexto social ou religioso. O papel último dessas obras é de mostrar nelas o invisível.
A máscara africana é vista, muitas vezes, pelos ocidentais, com olhares cheios de idéias preconcebidas e de julgamentos prévios. Ela não é um acessório de teatro nem um objeto de arte decorativa e menos ainda um acessório de feitiçaria. É, sobretudo um ser sagrado que utiliza-se do suporte material do homem, considerado então como um guardião, para aparecer e se exprimir. Ela não representa um ser: ela é um ser.

AS MÁSCARAS SAGRADAS representam uma divindade, uma força vital. Elas detêm os poderes religiosos. Elas exercem uma ação propiciatória ao trazer forças vitais benéficas (gênios, deuses secundários) que são os intercessores entre os homens e um deus difuso no universo. Elas exprimem a majestade, a sabedoria, o mistério das forças sobrenaturais que as animam. Elas são encarregadas de mostrar o invisível aos olhos humanos. Elas afastam as forças vitais do mal, elas protegem os homens das forças maléficas. Elas intervêm nas cerimônias: ritos de passagem, purificação, sacrifícios, iniciações, conjurações...elas desempenham um papel essencial no restabelecimento da ordem social. Elas representam os ancestrais e Deus, elas são boas e justas. Elas punem aqueles que trazem a desordem e a insegurança. Elas funcionam com o juízes supremos. Elas detêm os poderes jurídicos. Elas julgam os litígios, os problemas de família, dos clãs, das tribos. Estas máscaras só saem em acontecimentos importantes ou são guardadas em recipientes privados e sagrados.

AS MÁSCARAS PROFANAS são representadas por uma multitude de máscaras que se produzem em momentos de festa e divertimentos. Sobre as máscaras de divertimentos diríamos que elas representam os ancestrais do clã da família, visando a atrair a alma do ancestral e capitalizar sua essência vital. Imortais, eles, os ancestrais são os depositários de um patrimônio cultural. São quem contam as histórias, são a memória do povo. Eles formam uma sociedade hierarquizada, a máscara sagrada é acompanhada por uma plêiade de outras máscaras. Há a máscara guerreira encarregada da conquista e da defesa do território. Ela acompanha a máscara sagrada porque se trata de fazer a justiça em caso de perda. Por ocasião das festas ela é encarregada de supervisionar o comportamento de cada um para detectar os maus elementos. Há a máscara griot, que é companhia fiel da máscara sagrada. O griot é um cantor solitário. Ele louva a máscara sagrada. É também um espião, pois ele escuta, observa, e conta o que viu para a máscara sagrada. Ele influencia a máscara sagrada a ser mais clemente. Ele é também o cantor e historiador genealogista. Ele pode também dançar e é animador de todas as festas. Ele é indispensável para participar de acontecimentos como funerais. É um virtuoso da dança, pleno de vitalidade. Seguidamente é acompanhado do mascarado cantor. É enfim, o mascarado mediador:ele está presente em todos os níveis da hierarquia. Deve ser iniciado na arte da dança, do canto, da guerra. Ele distrai todo mundo com suas galanterias e seus ditos engraçados. Ele vai de casa em casa pedir alimentos. O portador da máscara deve ser sempre iniciado, sua identidade é sempre desconhecida, sua personalidade se desfaz completamente, pois ele é somente o suporte humano para que a máscara se torne acessível aos homens.

A máscara é um vetor essencial de reivindicação de uma identidade local, geralmente um benfeitor mítico da comunidade. Ele rege as coletividades, e completa uma função religiosa, política, econômica, histórica e terapêutica.

FUNÇÃO RELIGIOSA porque assegura a mediação entre deus, os ancestrais e os homens. Aparece nos ritos de passagem. É a protetora contra os espíritos maléficos. Muitas categorias de máscaras lutam ativamente contra a feitiçaria que é o principal agente de todos os males, das doenças e sofrimentos possíveis. O espírito associado ao mascarado possui a faculdade de detectar feiticeiros e os caçar. Essa função é dupla, pois vem acompanhada de uma ação punitiva, da erradicação do mal. Após a intervenção mascarada, os culpados caem doentes e podem morrer se não repararem suas faltas através de compensações, normalmente em forma de sacrifícios importantes. Em certos casos, o portador da máscara já é escolhido por sua capacidade de dupla visão e assim pode descobrir os agentes do mal. O espírito da máscara é utilizado para determinar a punição adequada.

FUNÇÃO POLÍTICA porque a mascara garante a hierarquia social. Instância suprema para o regulamento de todos os problemas que podem vir a acontecer na comunidade. Ela faz respeitar a ordem e a justiça e intervêm em todas as decisões vitais. Como a máscara fala, ninguém pode contradizê-la. Suas decisões são inapeláveis. Os homens de poder (reis, chefes e outros dignatários) tem necessidade de garantir seu domínio e de o consolidar, por isso a ajuda das forças sobrenaturais é sempre bem vinda e nesse quadro as aparições dos mascarados correspondem a intervenção impressionante que os dirigentes tanto prezam.
Nada pode manter a população à distância dada à crença e o respeito que as populações tem pela máscara e o mascarado.


FUNÇÃO SOCIAL porque mantêm a harmonia da comunidade e assegura a perenidade do saber. Assegura os laços entre os ancestrais e os vivos e traz para a vila as bênçãos dos ancestrais. As máscaras assumem regularmente o papel de policiais locais e supervisionam, dão o alerta, julgam e punem os malfeitores. A vantagem dos mascarados é que ao aplicar as punições isso é feito dentro de um total anonimato para o mascarado. Também é necessário atentar para verificar possíveis abusos por parte do mascarado que deve sempre agir com total senso de justiça. Para isso, ele, o mascarado está sempre também sobre a vigilância dos dirigentes políticos.

FUNÇÃO CULTURAL E EDUCATIVA porque as máscaras são depositárias da cultura de uma etnia. Os homens se sucedem, os povos desaparecem, a sociedade evolui, mas a máscara permanece após sua criação até o término de suas muitas mutações. Ela é a memória que permanece e que conta a evolução do povo. As máscaras transmitem um saber, ensinamento de linhas de conduta, aconselha e influencia. Elas representam os modelos admiráveis a seguir e dos quais os homens devem se aproximar. Elas concentram a ética de uma sociedade, sublinham as coisas importantes dessa sociedade, a serem seguidas ou evitadas. Na sua utilização elas veiculam numerosas mensagens dirigidas a todos, ou ao contrário, a um público reservado.

FUNÇÃO DE INICIAÇÃO porque os segredos ligados a sua existência fazem parte dos ensinamentos ministrados aos jovens iniciados. As sociedades secretas, na maioria masculinos, chamam os mascarados no decurso de seus rituais específicos. Alguns deles compreendem numerosos graus de acesso e são regidos por ciclos iniciáticos. Tornam-se assim possuidores de conhecimentos esotéricos que permitem a manipulação e o controle dos não iniciados.

FUNÇÃO FUNERÁRIA porque a intervenção das máscaras tem sobretudo um papel purificador. A morte introduz uma forma de desequilíbrio na sociedade, e isso é como uma mancha que deve ser lavada. As máscaras procuram a alma do defunto para a conduzir ao reino dos espíritos a partir do qual ele poderá se transformar em força vital e beneficiar seus descendentes.
Estas obras satisfazem o senso estético, mas vão além do senso estético, pois fornecem a visão de infinito espiritual, a beleza ou o terror. A máscara pode ser eficaz no sentido positivo ou terrorífica, mas sempre sagrada. A forma estabelece não mais que um jogo de forças secretas, de energias vitais. O estudo estético dessas máscaras variadas revela um interesse pela abstração, pelo apuro das formas e pela sabedoria.

A tradição de portar máscaras remonta as noites dos tempos e nos encontramos traços delas nos afrescos Du Saara (na Líbia) que remontam a 15.000 anos. As primeiras máscaras eram máscaras de animais levadas ao alto da cabeça, e os chifres dos bovinos eram elementos essenciais. Os dançarinos e as dançarinas se penteavam e se escondiam sob plantas vegetais, escondendo pernas, braços e o busto. O importante era se comunicar com as energias vitais e sagradas que regiam o mundo e assim assegurar a fecundidade e a continuidade .

AS MÁSCARAS ANIMAIS se diversificaram a partir do reconhecimento do papel que o animal exerce junto ao homem. O homem reconheceu em certa época longínqua a anterioridade do animal sobre o homem. Diferentes animais desempenham papéis nos mitos criadores e nos ritos de adivinhação. É um pouco mais tarde que a função da máscara se diversifica, como signo de diferenciação numa sociedade de iniciação, como proteção da tribo e serve aos guerreiros que se revestem duma vestimenta carregada de substâncias mágicas e o rosto recoberto de uma máscara, ou como cura das doenças. Os chifres animais e as máscaras meio-homem, meio animal subsistiram por longo tempo e tem como papel estabelecer uma relação com as forças irracionais que são aquelas sagradas. Os ornamentos nas máscaras são revestidos de significados múltiplos: de dialogar com os acontecimentos, de assegurar a proteção da família, de acompanhar os rituais de iniciação, de participar das festas da semeadura e da colheita, de livrá-los da morte, das guerras e das doenças.


Na maior parte do continente africano, a máscara permanece ainda em nossos dias uma das expressões privilegiadas que tem dado lugar a uma impressionante variedade de formas , de materiais e de estilos. Entretanto, é necessário não dissociar a máscara africana do restante da roupa, pois sem a roupa ela perde o sentido geral da mensagem. A máscara africana não pode ser considerada em apenas sua dimensão estética e artística, mas também a sua funcionalidade no seio da sociedade que a criou e que a utiliza num conjunto de artes sagradas que asseguram seu equilíbrio, objeto de eterna procura. Muitas vezes, separada de seu conjunto de vestimentas, de seus enfeites, de seu penteado, dissociada de seus acessórios de dança que a acompanham e que se constitui num de seus elementos, a máscara incontestavelmente perde sua significação mais profunda.

A máscara é também maquiagem, pintura corporal, fibras, folhas, peles de animais, tecidos, penteados...todos elementos que constituem um conjunto onde ela se insere, onde cada parte tem também sua significação.

Os materiais de predileção da maioria das máscaras africanas é a madeira, apesar de existirem outras de outros materiais, como fibras vegetais, cabaças, couro, tecidos, às vezes contas, caramujos, metais, marfim, resina...a escolha desses materiais não é aleatória: eles são escolhidos e associados em função da sacralidade da máscara ou do simbolismo que ela exprime. O escultor criador de máscaras trabalha geralmente fora da vila; ele deve observar os interditos muito sérios, passar por vezes por purificações, porque ele deve ser isento de toda impureza para poder fazer seu trabalho bem. segundo as regras. A máscara, ela mesma, a cada utilização é repintada por ser uma máscara policrômica, e a pintura é que torna a máscara “viva”. Durante os períodos cerimoniais as máscaras são conservadas, cuidadas, servidas e mesmo “alimentadas”.

Os principais locais das máscaras são na África ocidental e na África central. As formas variam de acordo com as áreas culturais e as etnias. Quanto aos usos e funções elas correspondem ao ciclo anual dos ritos agrários ( semeadura, colheita) e ao ciclo da vida. No ciclo da vida, dois acontecimentos são considerados essenciais: a iniciação e a morte. Nas cerimônias de iniciação dos jovens, as máscaras participam em diferentes etapas. Somente os pertencentes aquela etnia podem presidir a circuncisão, intervir como mestres iniciadores, revelando aos profanos os conhecimentos necessários a sua formação técnica, moral e social. Nesta ocasião, a máscara é envergada pelos mestres da iniciação que então poderão passar aos jovens iniciados o segredo das máscaras. Materialização de seres sobrenaturais ou de ancestrais, símbolo do sagrado, as máscaras presidem geralmente o encerramento do período de luto.Elas intervêm também nos casos de calamidade ou ainda, em casos de litígio, como agentes de controle social. Em certas etnias, elas são o apanágio do poder do chefe.

SIMBOLISMO DE ALGUMAS CORES DAS MÁSCARAS AFRICANAS

O BRANCO: é uma cor de passagem, a passagem da morte ao renascimento, a mutação de um ser. É igualmente a cor de Deus (ligado aos ancestrais) representam a luminosidade, a inocência, a pureza e a retidão. Essa cor é fabricada a partir do kaolin ou de cal esfarelado (outras vezes podem ser de casca de caracol, de casca de ovos, excrementos de lagartas ou de cobras sacralizada). Em certas vilas do norte do Nvari-Kwilu o kaolin significa luto, e só serve para decorar os túmulos.

O PRETO: é uma cor negativa, pois representa a morte, o anatemizado, o mal, a feitiçaria e o anti-social. É fabricado com o carvão de madeira. Na costa do Marfim, são feitos de folhas queimadas. Trata-se de um valor complementar entre os Igbos.
O VERMELHO: o símbolo é ambivalente, pois representa o sangue, o fogo, o sol (e o calor) mas também a reintegração de um ser marginal, a fecundidade e o poder. O vermelho mais escuro representa as forças agressivas e o sangue impuro. É fabricado com a ajuda de substâncias minerais, sacrificiais (em sua origem, uma noz de cola mastigada)
O AMARELO: é um valor complementar entre os Igbo. Essa cor representa a paz, a serenidade, a fortuna, a fertilidade, a eternidade, mas também o declínio, o anúncio da morte.
O AZUL: é uma cor negativa que representa a frieza, mais paradoxalmente a pureza, o sonho e repouso terrestre.

O VERDE: representa a crença, o nascimento, a virilidade.

O OCRE ESCURO: tem também um valor complementar entre os Igbo.


Tradução livre do Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo – Tata Kisaba Kiundundulu

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